sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Já não há raspas de madeira pelo chão

A minha vida foi sempre fortemente marcada por cheiros de coisas. Lembro-me de alguns: o cheiro das uvas morangueiras da casa do “Manel Zé” e que chegavam até à entrada do café, o cheiro do fumo dos cigarros “Português suave sem filtro” que o Abílio me mandava comprar (e ficar com o troco) no “Borracha”, o cheiro do "Lagar de Azeite do Carvalhal" no tempo da azeitona, o cheiro a pó nos primeiros dias de chuva, no Outono…

Um dos cheiros cuja memória frequentemente me assalta, foi o da pequena oficina do senhor Albino Simões, que trabalhava madeira. Quando a minha mãe ia a casa da Menina Rosa (na minha aldeia, todas as senhoras são ainda “meninas”) e me levava, havia coisas que eram para mim momentos de puro deleite: sentava-me no pequeno muro, junto à torneira em frente à oficina e bebia água numa pequena malga de inox, ainda que não tivesse sede. A menina Rosa dava-me sempre uns bolos pequenos e secos, que eu ainda hoje devoro quando a minha mãe os compra. Enquanto elas conversavam, eu ficava ali sentado, a olhar para a oficina e a beber água, como se estivesse no deserto marroquino. Quase que consigo sentir ainda hoje o sabor daquela pequena tigelinha, que estava presa à torneira com uma corrente frágil. Ficava também a ver o Senhor Albino Simões a trabalhar a madeira.


Muitas vezes, porque tinham uma horta perto da minha casa, o senhor Albino Simões e a menina Rosa, passavam e paravam em minha casa. Eram ambos muito amigos dos meus pais. Eram (e ainda são) como se fossem da família. O senhor Albino parava a bicicleta em frente à minha casa e entrava, para ir beber um copo de água pé com o meu pai e ali ficavam os dois à conversa. A caça era dos assuntos mais debatidos.

Quando ele entrava, falava sempre connosco com aquela voz forte e grave que só ele tinha e que fazia com que ficássemos presos a tudo o que nos dizia. Era um homem grande em todos os sentidos, ou eu, por ser mais pequeno, sempre senti que ele era um homem imenso. Tinha um coração generoso, que se revelava sempre demasiado mole para com a Mónica, que era a neta mais velha e (tenho a certeza), a preferida.

Quando a doença o desafiou para a luta, resistiu enquanto conseguiu. Fui vê-lo várias vezes a casa e a Coimbra e embora aquele corpo se tenha modificado e mutilado, ofereceu sempre a amabilidade que colocava em tudo o que fazia e falou-me sempre com aquela voz carregada de força, mesmo quando as forças já eram poucas.

Hoje, quando vejo a Mónica, descubro nela muito daquilo que o avô lhe deixou: um coração enorme, que se amolece com demasiada facilidade perante as pessoas de quem realmente gosta.

Ainda hoje a minha mãe costuma ficar à conversa com a menina Rosa. Ainda hoje existe a malga fragilmente presa à torneira. Já não existe o cheiro da oficina nem o som da plaina a desgastar a madeira nem raspas pelo chão. Há, em casa da minha mãe, umas prateleiras que o senhor Albino nos fez. Há a lembrança daquele homem grande, que foi sempre íntegro e digno e de quem hoje me lembrei com saudade.

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