sábado, 15 de setembro de 2012

A vindima

O  meu primeiro trabalho remunerado foi nas vindimas. Estava prestes a fazer 9 anos e seguia a minha mãe e os meus irmãos, que iam também trabalhar na vinha do “Doutor”. O dinheiro que ganhávamos era para pagar os livros e o material de apoio para a escola. O que a minha mãe ganhava, era para compensar o facto de o nosso dinheiro não chegar para comprar tudo. Mesmo assim, nunca gostei das vindimas, porque isso significava estar oito horas a trabalhar, durante duas semanas, antes do início das aulas e eu não podia brincar.

Foi assim que nos habituámos a estimar as coisas, até porque tudo o que tínhamos servia de uns para os outros. Os meus irmãos foram ainda mais longe que eu: como queriam usar coisas de marca, iam alcatroar estradas ao sábado. Quando os vi chegar a casa no primeiro dia, perdi logo a vontade de os imitar e andar com calças Levis ou t-shirts Adidas.

Quando se tem 9 anos, brinca-se. Não se trabalha. Quando se tem 9 anos, molda-se facilmente a personagem das pessoas. Foi também assim que o meu pai e a minha mãe, pelo trabalho, nos ensinaram a ganhar mais responsabilidade e a estimar as coisas que resultaram do nosso esforço. Eu penso que não me fez mal nenhum e hoje estou grato pelo facto de me terem ensinado cedo a importância e o valor do trabalho.

Há dias, em conversa com amigos, diziam-me que se fosse hoje, os meus pais seriam presos. É possível. Na época do politicamente correcto e da ditadura das crianças, não se lhes pode fazer nem dizer nada. Hoje penso que os meus pais me educaram com dignidade e o melhor que sabiam. Só quem nos conhece, pode dizer se fizeram bem. Nós tentamos honrá-los.

Não defendo que haja que dar trabalho às crianças. Nada disso. Defendo sim que uma educação pelo exemplo não é a melhor forma de educar. É a única. Foi o que os meus pais fizeram e eu estou-lhes muito grato por isso.

Eu e os meus irmãos fizemos muitas coisas e trabalhámos em muitos sítios.

Há uns anos, o meu pai decidiu ter uma vinha. Viveu ainda o suficiente para comer uvas da vinha que hoje me pertence.

Hoje fez-se a vindima, juntou-se a família e os amigos e celebrou-se o meu pai. Estou feliz.

É muito grande a riqueza do trabalho.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

João


O João é o sobrinho de um colega de trabalho.

Loiro, com uns olhos impossivelmente azuis e um sorriso desarmante, não deixa ninguém indiferente. Conhecemo-nos no início da semana passada, já que ele estava a passar uns dias de férias na arrábida, com os pais. Acabámos por almoçar quase todos os dias juntos.

Ao início, porque é tímido, não falava muito porque não me conhecia e não tinha “à vontade” para o fazer. Com o passar dos dias, foi-se soltando e acabou por interagir muito.

Ontem, porque não consegui ir almoçar com ele, soube que perguntou por mim e fiquei contente com isso. Hoje foi o último dia de férias e voltámos a almoçar juntos. Depois de um início um pouco acanhado, lá se soltou e falou imenso. Depois da sobremesa, pediu-me se podia pagar a minha parte. Acedi. 

No momento da despedida, estendeu-me a mão porque, segundo ele, “os homens dão apertos de mão”. Quando soltámos as mãos, disse-me: “vou ter saudades tuas”. Fiquei sem palavras.

O João tem três anos e deixou-me de olhos rasos de água.

As crianças têm a expressividade genuína de um prazer consciente e partilhado, por isso é que são o melhor do mundo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A boa disposição

Ao longo da minha vida, encontrei centenas de pessoas cuja principal característica era a boa-disposição.

À medida que fui conhecendo algumas dessas pessoas, percebi que são essas as que estão sempre disponíveis para os outros, sempre dispostas a contar uma piada, a dar uma gargalhada ou a deixar toda gente bem-disposta. Percebi também que são, por natureza, pessoas sós.

O melhor que temos a fazer é estar perto dessas pessoas, por dois motivos: primeiro, porque estaremos sempre bem. Depois, porque essas pessoas nunca irão dizer que precisam de nós.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Primeiro dia na escola

Fui criado numa aldeia pequena, em absoluta liberdade. Acordava, pegava nas minhas coisas e ia para a rua. Havia pouca gente com carro e por isso, era possível passar o dia inteiro deitado na estrada a fazer desenhos com bocados de tijolo ou a jogar à bola, sem que passasse qualquer viatura. Quando muito, uma motorizada, que se desviava de nós. Só via a minha mãe para almoçar, lanchar e jantar. Fora isso, era para andar na rua ou pendurado nas árvores na brincadeira.

Por vezes ia com a minha mãe para o campo. Pequeno, não ajudava em nada, mas entretinha-me com qualquer coisa. Tenho uma vaga ideia de ter acompanhado a minha mãe na época da azeitona, e ter ficado uma tarde inteira a brincar com os desperdícios vermelhos que servem de “casca” do queijo flamengo e paus pequenos de oliveira. Quando somos pequenos, não precisamos de muita coisa para sermos felizes…

Um dia, tive que ir para a escola.

Lembro-me que a minha mãe me foi deixar lá e que disse à professora que, caso eu me portasse mal, me podia dar umas bofetadas (parece que estava a adivinhar). Os outros miúdos entraram e eu fiquei com a minha mãe, à porta. Até que ela me disse para eu entrar e eu perguntei, espantado “mas também é para eu ir?”. Como era para ir, lá fui…

Na minha aldeia, porque éramos 33 alunos no total, ficámos todos na mesma sala. Na primeira classe, éramos apenas quatro: eu, o Luís, a Natália e o Zé. Mais tarde, veio (transferido de outra escola), o João Pedro.

Aquele dia não foi muito diferente do que se passará hoje por este país fora, no primeiro dia de aulas. Tenho apenas uma recordação mais “forte”: eu, o Zé e o Luís, decidimos saltar de “carteira” em “carteira”, fazendo rimas com os nomes dos outros miúdos (Bela panela, João ratão, etc). Uma vez desrespeitados os avisos para parar, fomos agarrados pela D. Mariazinha, que nos encostou à parede e nos deu 20 réguadas em cada mão.

Não sei se isso me fez mal, se me tornou mais amargo ou se me trouxe problemas psicológicos. Sei é que no primeiro dia de escola aprendi a contar até 20… e que se tornou urgente aprender a ler e a escrever para melhorar o nível das rimas que eu quisesse fazer dali em diante.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O mundo no sofá

Não sei exactamente há quanto tempo descobri o “CouchSurfing”, mas quando me explicaram exactamente do que se tratava, pensei que oferecer alojamento gratuito a quem está a viajar era uma ideia absolutamente vencedora (e era mesmo).

Esta é a forma que muitos viajantes têm de conhecer o mundo, sem que para isso tenham que gastar dinheiro em alojamento, o que não significa que só pessoas sem dinheiro é que recorram a este tipo de alojamento. Pessoalmente, pretendo apenas conhecer as cidades de outra perspectiva: do ponto de vista de quem a habita. Há ainda a possibilidade de conhecermos pessoas, de termos companhia para uma bebida ou para passar todo o dia connosco. Normalmente, as pessoas que nos recebem ou acompanham, dão sempre excelentes dicas.

Já recebi algumas pessoas e já fiquei em casa de várias pessoas. Não tive, até hoje, qualquer experiência que não tivesse corrido bem. Quando viajo e peço alojamento a outros “CouchSurfers”, acabo sempre por tentar compensar quem me vai receber, com alguma coisa tipicamente portuguesa (normalmente vinho ou doces), uma vez que não sou grande fã das coisas “completamente grátis”. Tem-me acontecido mais ou menos a mesma coisa (uma vez um escocês ofereceu-me whisky sem saber que eu não gostava. Ainda assim, lá se abriu a garrafa e celebrou-se).

Tento, quando recebo alguém, fazer um pequeno programa com os principais locais de interesse (fora dos roteiros turísticos), para dar uma perspectiva diferente sobre Lisboa. Como não tenho dias de férias para acompanhar toda gente, as noites são nossas. Há muita coisa para fazer nesta cidade e normalmente só fazemos quando temos visitas. Só por isso, já vale a pena.

A experiência de “CouchSurfing” dá-nos uma maior abertura de espírito. É maravilhosa a confiança que se estabelece entre estranhos.

O início de algumas viagens (mesmo na nossa própria casa) pode ser aqui: www.couchsurfing.org

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Solidão a dois

A solidão é um estigma pesado com o qual nem todos estamos preparados para lidar. Algumas pessoas acabam por se envolver afectivamente, apenas para não estarem sós. Muitas vezes, o que acontece é ainda mais dramático e as pessoas acabam por enfrentar uma situação de solidão pior: sentirmo-nos sós, estando acompanhados.

Estar acompanhado não significa que não se está completamente só. Estar sozinho não significa que se está só. Viver na solidão não quer dizer que não se tem companhia para se estar. Significa que as pessoas que nos rodeiam (muitas vezes dentro do casal) não compreendem as nossas palavras ou as nossas acções. Sentirmo-nos sós numa relação, significa que percebemos claramente que o outro nunca nos completará.

É muito difícil explicar a quem nos rodeia, que estamos na mais profunda solidão, ainda que sejamos alvo do respeito e admiração de muita gente. A solidão a dois é o sentimento de abandono na presença de outra pessoa. E é isso que deve ser combatido.

Um destes dias, uma amiga minha falava-me da indiferença do marido, face aos problemas no trabalho que ela tem tido e partilhado com ele, obtendo como respostas, apenas monossílabos e o corte das conversas a meio com assuntos insignificantes. A solidão começa muitas vezes no silêncio. As pessoas esquecem-se que as relações afectivas não são meras trocas nem jogos de interesse: eu dou afecto e recebo afecto. Há que haver equilíbrio nos sentimentos e nos comportamentos.

Quem nunca viu, num restaurante, um casal que não fala durante toda a refeição? Quem não conhece casos de casais que passam a vida a arranjar estratégias, na tentativa de adiar o mais possível o encontro em casa, a dois? Há até quem tenha filhos para não estar só…

Nas relações, é muito importante a conversa franca, sem medo de dizer coisas desagradáveis, mas sentidas. O diálogo aberto e honesto acaba por (ajudar a) resolver a maioria dos problemas de um casal.

O que interessa, afinal de contas, é acreditarmos que vale a pena fazer alguma coisa e darmo-nos ao trabalho de avançar.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O ídolo foi embora


Chegaram a Gaia, hospedaram-se no The Yeatman, pediram uma reunião à Administração da SAD do FC Porto e acabaram a entregar um cheque no valor de quarenta milhões de euros. Foi assim que os russos do Zenit levaram o Hulk. E eu fiquei triste. Ele foi ganhar uma fortuna, o FC Porto recebeu 40 milhões de euros e teremos agora que idolatrar cegamente outro jogador. 

Somos um país pequeno, periférico, temos um campeonato desinteressante e é fácil vir aqui um qualquer clube endinheirado e levar quem quiser. Os jogadores de futebol não têm “amor à camisola”. O Hulk foi mais um desses… é melhor do que a grande maioria dos jogadores, mas no essencial, é igual a eles: mercenário.

Podem sempre dizer que o Hulk foi ganhar um salário excepcional e que no final do contrato, terá assegurado o futuro da família até à quinta geração, no entanto, como o campeonato russo não é seguido no Brasil (e muito pouco na Europa), rapidamente deixará de ser convocado para a Canarinha. Penso que daqui a dois ou três anos, haverá apenas uma breve memória de um jogador que um dia foi “incrível”. Se ele ficasse mais uns anos no Porto, arriscava-se a ser um pouco menos milionário, mas mais titulado e admirado.

O FC Porto perde qualidade e poder de explosão, os adeptos portistas perdem um ídolo e o campeonato português perde um jogador fantástico. Deixaremos de poder assistir às jogadas e aos golos extraordinários de um jogador de excepção. É por causa de jogadores como o Hulk que vale a pena pagar bilhete e estar 90 minutos a ver futebol. Tantos foram os jogos em que se dizia que houve “demasiado Hulk”. Serão muitos os jogos em que sentiremos saudades dele, com a tristeza de o ter visto partir para um clube que considero ser inferior ao FC Porto. É apenas mais rico. O Hulk trocou a glória dos títulos pelo conforto dos rublos.

Só lhe consigo perdoar porque tantas vezes fez com que nem sequer houvesse discussão futebolística no meu trabalho. Chegar à segunda-feira a Setúbal depois de ter um fim-de-semana salvo pelo Hulk, valeu muito.

Obrigado por tanto e até sempre, Hulk.


(Sim, estou “ressabiado”)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Volkswagen Carocha

Nasci numa quinta-feira de Outono. Estava uma manhã soalheira para me receber. O Dr. Vilarinho e a Teresa ajudaram-me a chegar. As primeiras horas terão sido iguais às de toda gente: chorar, dormir, comer e sujar fraldas. Não é isto o que mais importa agora.

Uns dias depois, deixava a Clinica de Santa Iria, em Tomar, a caminho da Delongo. Para a minha mãe, tratava-se do regresso a casa. Para mim, era a viagem de ida. A primeira de todas.

Como os meus pais não tinham carro, foi o Sr. Rogério, que era um amigo da minha família, que nos foi buscar.

Desde sempre me lembro dele e de o ver passar no seu Volkswagen Carocha, aquele que foi o primeiro carro onde andei na vida e talvez a minha primeira paixão automobilística. Era muito semelhante ao da foto que aqui publico.

No dia que tirei a carta de condução, comprei um carro. Por muitos motivos e embora gostasse de ter um carro igual ao que me transportou para casa dos meus pais, não pude satisfazer a minha vontade, comprando um Volkswagen Carocha. Esse é um desejo que se mantém e tenho a ambição de o realizar.

O meu primeiro colo foi o da minha mãe. A minha primeira viagem, até à minha aldeia (que é o lugar onde quero regressar sempre), foi num Carocha.

Aquela primeira viagem revela muito do que tem sido a história da minha vida: a generosidade dos amigos e o abraço de quem me quer bem.