quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A saída

De cada vez que deixo a minha aldeia rumo a Lisboa, aumenta a falta que aquele chão me faz. Em nenhum outro sitio me sinto tão em paz como ali. Há pessoas que me conhecem desde que nasci, que me tratam com enorme respeito, quando são essas pessoas, alvo da minha maior admiração.

Saí da minha aldeia há 17 anos. Saí porque tinha definido um rumo para a minha vida e queria concretizá-lo. Há pessoas que decidiram ficar ali para sempre. Pensei que era por serem menos ambiciosos do que eu.

Descubro a cada visita, que era na minha aldeia que eu devia ter sempre ficado. É lá que me descubro e que me descobrem. É ali que encontro quem me abraça e sorri tão genuinamente ao ver-me.

Há pessoas que, por velhice, foram obrigadas a sair de suas casas para serem internadas em lares de idosos. Ao ouvi-los, descubro-lhes a mágoa desse abandono forçado e penso no meu, voluntário e ambicioso.

Quantos mais dias passam, mais perto estou de regressar à minha aldeia e ao convívio diário com quem me quer tão bem, sem outro interesse que não o meu bem-estar.

Se mais razão não houvesse, bastar-me-iam as lágrimas emocionadas de pessoas que me pegaram tantas vezes ao colo e que hoje, quase sem forças para se levantarem e caminharem, ainda me abraçam, firmes, com pena de mais uma despedida.

Eu vou voltar.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Pelo colectivo

Um destes dias fui assistir a uma noite de fados numa colectividade de uma pequena aldeia do concelho de Tomar.

Era tudo amador (até pelo facto de todos amarem o que fazem). Os músicos e os fadistas eram de lugares próximos e ensaiavam em segundos, no palco antes de cada actuação. Cada um deu o que tinha: Uns, a voz, outros os dedilhados nas cordas das violas e da guitarra.

Na cozinha, as mulheres atarefadas à volta da panela, preparam o caldo verde que vai ser servido no primeiro intervalo. A couve portuguesa, as batatas, o azeite e o chouriço foram também oferecidos. Alguém trouxe uns garrafões de agua-pé e bebe-se devagar, enquanto se chora a dor e a saudade no palco.

Com pequenos gestos de cada um, a um preço simbólico, mais de cinquenta pessoas ouvem fado e aquecem o corpo e a alma numa noite gelada, algures no "país real".

É em pequenas colectividades como aquela, que se decide e consegue a alegria de uma comunidade em partilha. Cada um trabalha gratuitamente ou oferece o que tem, pelo bem comum e pela cultura da gente da terra.

Por algumas horas, todos felizes.

É hora de recordar. Fernando Maurício é o primeiro.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Salvação, mas pouco

Eu e os meus irmãos temos a veleidade de salvar o país de duas em duas semanas, quando nos encontramos em casa dos meus pais. Discutimos sempre com muita intensidade na defesa do modelo que, acreditamos, irá tornar Portugal na maior potência europeia, rivalizando até com o Japão e com os EUA.

Raramente concordamos nos argumentos, falamos alto, por cima uns dos outros, muitas vezes sem sequer dar tempo de resposta ou pensarmos bem antes de dizermos os disparates que tantas vezes dizemos quando as posições se extremam.

Enquanto o meu pai esteve connosco, ocupando sempre o topo da mesa, tínhamos o cuidado de moderar as conversas, até no sentido de que ele tomasse partido por um de nós, encerrando a conversa.

Agora, é praticamente impossível à minha mãe conseguir algum consenso nesta "família à italiana" com três filhos adeptos (fanáticos) de três clubes diferentes, com três defensores de soluções politicas diferentes e até com olhares díspares sobre religião. No entanto, quando as coisas estão prestes a azedar, há sempre uma das maravilhosas sobremesas que ela nos prepara. Enterram-se os machados de guerra e aguarda-se por nova batalha dali a duas semanas.

De barriga cheia, entretemo-nos então a falar da nossa vida e das nossas coisas. Cada um de nós deseja um mundo melhor para os outros dois e é por isso que discutimos sempre sobre o estado das coisas.

Antes de salvar o mundo todo, queremos salvar o mundo dos outros dois. É por isso que vejo os meus irmãos como super-heróis. 

Adoramos discutir e isso é o sal da vida.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Para o Porto

Acordou cerca da hora de almoço, já com pouco tempo para tudo. Na véspera houve uma pequena festa de despedida. Reparou que tinha um embrulho em cima de uma das quatro malas prontas a fechar. Era "O Papalagui", com uma dedicatória.

Levantou-se ainda ensonado, e foi para o banho. Seguiu-se o habitual almoço de Domingo, em família, desta vez quase silencioso. Aquela partida era pouco desejada pelos pais, mas inevitável. Havia a certeza de um mundo melhor à espera. A ilusão do sucesso estava mesmo ali. Explicar isso a quem nos quer por perto não seria fácil para ninguém.

Ao início da tarde, começaram as despedidas. Era só um "até já" porque "o Porto é já ali e eu venho muitas vezes". Repetiu isso vezes sem conta por entre os vizinhos que ia encontrando, como que precisando dessa repetição para acreditar no que estava a dizer.

O abraço demorado da mãe foi o último antes de entrar no comboio. Nunca saberei o que custa a um pai ou a uma mãe, o momento da despedida. Aquele momento em que se sabe que a cria, ainda tão imatura, já insiste em caminhar apenas pelo seu próprio pé e já se sente dono de todas as certezas do mundo, deixando para trás a casa de sempre. O lar.

O olhar da mãe, que atravessava os vidros da janela da carruagem, era chuvoso como aquela tarde fria de Dezembro. Por um segundo, teve vontade de voltar e desistir de tudo. Mas sorriu e acenou uma vez mais.

Lentamente o comboio parte com destino ao Porto. O caminho era para preparar definitivamente o coração para o realizar do maior sonho: viver no Porto. Tinha chegado o primeiro dia.

A aventura começava e, apesar da tristeza que tinha deixado lá atrás, não havia maior sorriso do que aquele que o seu rosto transportava. Estava feliz por ter conseguido.


Passam hoje 17 anos que deixei aos bocados o coração dos meus pais. Há 17 anos, cheguei ao Porto carregado de sonhos e de esperanças. Aquela cidade tornou-se, em pouco tempo, a minha segunda casa. Aquela gente hospitaleira e genuína, passou a ser parte da minha enorme família.

Provavelmente não voltarei a viver no Porto, mas recordarei os anos que lá vivi como o melhor tempo da minha vida.