quarta-feira, 20 de março de 2013

Sessenta e sete

Depois de um dia sem nada que o distinguisse dos outros, juntaram-se os filhos e a mulher para lhe desejar "muitos anos de vida". Aquele era um dia frio, que nos lembrava que apesar de estarmos já às portas da primavera, o inverno estava ainda vigoroso. Eram os encontros em família que tornavam menos dolorosos os dias sucessivos passados no hospital.

Aquele homem, agora frágil, reagia com indesfarçável alegria à presença da sua família e estava feliz por completar 59 anos, embora já se conseguisse detectar nele, aquele olhar perplexo e magoado que têm os que sabem que vão partir em breve, sem que nada possa ser feito para o evitar. 

Demasiado cedo para se lembrar, perdeu a mãe. Mais tarde, a vida levou-lhe primeiro o pai e depois, à vez, dois dos seis irmãos. Viveu a guerra, ultrapassou a morte de amigos chegados e de camaradas de armas. Sofreu desgostos, fracassos e tristezas e talvez por isso amasse com a frieza de uma rocha. Apesar da dureza de muitas perdas e faltas de afecto, estava lá sempre, para tudo. Não era um homem vulgar e, embora não parecesse, era muito atento a tudo. Não censurava o desaire nem enaltecia a vitória. O seu percurso de vida tornou-o um pouco austero nos afectos.

Os últimos meses haviam revelado um homem que, sem o dizer, mostrava sentir que aquela família era tudo na sua vida. Construiu-a com os meios que tinha, impondo a honestidade, o respeito e a generosidade como princípios básicos.

Se fosse vivo, completaria hoje sessenta e sete anos.

Em muitos dias dos últimos anos senti a saudade que a sua ausência definitiva nos deixou. Hoje, ao acordar, lembrei-me dele e de que tenho muitas coisas para lhe dizer.

Quase sem que eu desse conta, no silêncio desta manhã, enquanto me olhava ao espelho, colocando a vida em perspectiva, saiu-me um "obrigado, Pai".

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